A era dos
transtornos
Evidencia-se que o processo de aprendizagem da linguagem
escrita é um fenômeno complexo que envolve uma multiplicidade de fatores –
culturais, sociais, políticos, educacionais, subjetivos etc. – e que jamais
pode ser reduzido a uma questão de natureza simplesmente biológica. Dessa
maneira, ratifica-se a concepção contra-hegemônica de que a escrita constitui
um fenômeno conceitual singular, de tal
modo que as diversidades não devem ser vistas, a priori, como sinais ou sintomas de um Transtorno Funcional
Específico (TFE), mas como indícios das singularidades no processo de
apropriação da escrita.
Entende-se que a manutenção de uma concepção de um
determinismo biológico para as dificuldades na aprendizagem ou domínio da
escrita – e até mesmo o próprio conceito de TFE -, na verdade envolve uma
questão paradigmática. É preciso considerar que uma construção teórica
sustentada por um paradigma nada mais é do que uma hipótese e, portanto, não
pode ser arrolada como a verdadeira natureza do real. O fato é que os
paradigmas passaram a se instituir como verdadeiras doutrinas
acadêmico-científicas, prevalecendo numa sociedade aquele definido pela ciência
de maior eloquência política. E assim se perpetuam
nos meios acadêmicos, médico e escolar os processos de patologização¸ justamente porque escamoteado nas teorias formuladas
por essas ciências de maior eloquência esteve, e permanece, um sujeito
ideal – perfeito, abstrato e universal.
E assim vivemos, a “Era
dos Transtornos”, um tempo em que os sujeitos são despossuídos de si mesmos e
enredados na teia de diagnósticos-rótulos-etiquetas antigos, novos ou
reinventados:
“Menino Maluquinho
não existe mais, está rotulado e recebendo psicotrópicos para TDAH; Xaveco não
vive mais nas nuvens, aterrissou desde que seu Déficit de Atenção foi
identificado; Cebolinha está em treinamento na mesma cabine e nas mesmas
tarefas usadas para rotulá-lo como portador de Distúrbio de Processamento
Auditivo (DPAC) e assim está em tratamento profilático de dislexia que terá com
certeza quando ingressar na escola; Cascão é objeto de grandes debates no
comitê que está elaborando o DSM V, com divergências se ele sofreria de TOCS
(Transtorno Obsessivo Compulsivo por Sujeira) ou de TFH (Transtorno de Fobia
Hídrica), mas tudo indica que chegarão a um acordo e os dois novos transtornos recém-inventados
serão lançados no mercado, pois quanto mais transtornos melhor.” (Moysés MA,
Collares CAL, 2013)
Diante de tal patologização,
a atuação fonoaudiológica educacional
convoca a elaboração de uma proposta de intervenção sustentada em princípios e
procedimentos que contribuam para que as instituições educacionais brasileiras
cumpram, o mais efetivamente possível o seu papel social, constituindo-se como
escolas verdadeiramente inclusivas, cujos princípios orientem a Educação do século
XXI, sob a perspectiva do direito à diversidade, à identidade cultural e à
autonomia.
Referências:
Marchesan IR, Silva HJ, Tomé MC (orgs). Tratado das
Especialidades em Fonoaudiologia. 1ª Ed [Reimpr.]. São Paulo: Roca, 2014.
Moysés MA, Collares CAL. Medicalização o obscurantismo
reinventado. In: Collares CAL, Moysés MA, Ribeiro MC (org.). Novas capturas,
antigos diagnósticos na era dos transtornos. São Paulo: Mercado de Letras;
2013b, p. 41-65.
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